terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Enterro do Bacalhau




Do nosso amigo Silvestre recebi mais um história.
Destas cegadas também eu me lembro.
Lembro-me do Ti Rafael que fazia sempre de viúva, e que bem ele chorava. Dos outros intervenientes não me lembro muito bem, mas isso o Silvestre faz bem, ora leiam!


ENTERRO DO BACALHAU
A Quarta-feira de cinzas, para quem não sabe, é o dia a seguir à Terça-feira de Carnaval. É de "cinzas" porque, naturalmente , se queima alguma coisa.
Bom, na Abrunheira, há uns anitos, comemorava-se este dia com festa até às tantas. Comer e beber até fartar, e falando em beber, era, como se costumava dizer, de caixão à cova, embora aqui, na Quarta-feira de cinzas, seja mais de "caixão - à - fogueira", já explico.
Na tradição de levar cena, na rua, as tão conhecidas "cegadas", este dia era-lhe dado o nome de "enterro do bacalhau". Desde que comecei a pensar nestas coisas, ainda não consegui descobrir donde vem o “bacalhau” que, aqui, substitui o “Entrudo”, ou seja, o nome original devia ser o enterro do Entrudo que é o outro nome pelo qual se designava o Carnaval.
Então, na 4ª feira, juntava-se o pessoal mais activo e disposto para a brincadeira do Carnaval, das últimas vezes que me lembro, capitaneados pelo Ti Rafael, mais conhecido por Rafael Coxo, faziam um boneco, que seria o morto (bacalhau) vestido e com a roupa cheia de palha, assim tipo espantalho, deitavam-no numa padiola (a padiola é como se fosse uma maca, ou uma base de andor nas procissões). Este morto tinha uma particularidade, entre as pernas aplicavam-lhe “um das caldas, daqueles bem grandes” que estava sempre cheio de tinto. O bacalhau era devidamente amortalhado, todo tapadinho parecia mesmo um morto. Os participantes vestiam-se a rigor, ou seja a preto, e a maior parte deles, sim porque eram sempre só homens, eram as carpideiras que acompanhavam a viúva que não se calava um segundo. Esta viúva era a personagem sempre interpretada pelo Rafael Coxo.
Pela hora do jantar, percorriam a Abrunheira, de porta em porta, numa berraria que só visto, e a viúva cumpria o seu papel, chorando como só o Rafael Coxo sabia. À medida que as pessoas iam abrindo as portas, à passagem do cortejo, a viúva chorava mais, as carpideiras berravam mais, e as mãos eram estendidas para a contribuição nas despesas do enterro. Toda a gente sabia como era e todos deixavam uma moeda ou davam de beber ou comer, e, em jeito de compensação, a viúva refinava o choro e levantava a mortalha para mostrar “as partes” do defunto, e bebia e dava a beber um pouco do seu líquido, é claro que muitos poucos faziam muito, e, principalmente a viúva, quando chegava ao fim, ia bem confortada. E por aí seguiam, lugar acima, lugar abaixo, até chegarem ao sítio combinado, Taberna do Álvaro, da Menina Emília, Taberna do Faial, ou já António Zé ou qualquer outro. Aí, de petisco já pronto e todos já bem regados, sentavam-se à roda da mesa, mas antes, também com a pira já pronta, no meio de grande berraria e de muito choro e tristeza da viúva, o bacalhau vai para a fogueira fazer cinzas. É claro que não se esqueceram de lhe arrancar as “partes”. A noite acabava à roda da fogueira em grande algazarra com todo o pessoal bem bebido e comido e com mais um Carnaval terminado.
O Último que lembro de ver, devia ter uns 10 anos, lá para meio da década de 60. No princípio da URCA chegou a falar-se em reavivar esta tradição, mas por uma ou outra razão, nunca se concretizou.
Silvestre Félix
Novembro 2007