domingo, 23 de dezembro de 2007

Abrunheira - Terra com História


Cinema (à manivela) na “Sociedade”
Chegava sem avisar numa carrinha com duas portas atrás. Entrava no lugar e logo fazia duas ou três voltas de cima para baixo e de baixo para cima, e, de altifalante ligado…. “atenção, atenção, hoje… às vinte e uma horas e trinta minutos… cinema nesta localidade…o espectacular filme – TARSAN! O HOMEM MACACO- . Não percam, logo pelas vinte e uma horas e trinta minutos, na Sociedade da Abrunheira, Tarsannn!!! o Homem Macaco… e repetia, repetia…., metendo, de vez em quando, um separador musical, que quase sempre era um passe-doble ou coisa parecida.
A meio do percurso, a carrinha já provocava um cortejo de rapaziada que não era brincadeira. Depois das duas voltas, que eram muito rápidas naquele tempo, o” homem do cinema à manivela” dirigia-se para a Sociedade, e, por artes mágicas, começava a tirar aquelas tralhas todas da carrinha. Como é que aquilo lá cabia tudo ??? Bom, concerteza era por ser do cinema, tinha magia também. Tirava tudo nas calmas e os putos a verem e até a ajudarem, montava a torre de projecção e depois punha-se a rebobinar as fitas, e eu, na minha lógica de puto, perguntava cá para mim… então, mas porque é que o homem não faz isto em casa?? E as bobinas eram mesmo muito grandes, e demoravam a rebobinar e o homem dava à manivela sempre, sempre, e já transpira e o suor pinga, pinga e ele continua, continua, e a bobina grande vai ficando cada vez mais pequena e a pequena cada vez maior, e o homem dá à manivela e o suor pinga, e as bobinas roçam nas hastes laterais e fazem incessantemente aquele barulho irritante de metal contra metal, e rodam, rodam, rodam…., até que uma está muito grande e a ponta final da fita salta da outra bobina, que continua a rodar sozinha, e o “homem do cinema à manivela” pára de dar à manivela devagar… devagar… e tudo parou. Estava concluída a primeira parte do trabalho do “homem do cinema à manivela “.
Lá pelas oito e meia, o pessoal começava a chegar, e eu naquele dia, que não me lembro há quanto tempo contado em anos foi, era puto… talvez de 8/9 anos, consegui ir ao cinema, provavelmente para fazer de pau de cabeleira da minha Irmã que nessa altura namorava o Alfredo. Sei é que eu estava lá muito cedo e vi tudo. As pessoas a chegar e o “homem do cinema à manivela” com um livro daqueles que parecem rifas, e como o fisco ainda não se importava com o IVA, e a ASAE ainda não tinha sido inventada, cobrava e cobrava e cobrava… não me lembro quanto, dava metade da senha e a pessoa tinha direito a sentar-se naqueles bancos de madeira corridos para ver o “TARSAN – O HOMEM MACACO”. A Sociedade enchia depressa e às nove e meia o “Homem do …….” apagava a lâmpada muito grande que de gambiarra ia até ele, e as figuras começavam a mexer-se no lençol branco estendido na parede. Primeiro a propaganda do regime que incluía sempre discursos do Américo Tomás, e paradas militares e visitas e inaugurações, tudo do bom e do melhor, só nós, o outro País, é que era tudo do mau e do pior…. e só depois vinha o “….Homem Macaco…..”. E o “homem do cinema à manivela” dava à manivela, dava, dava, e as imagens iam andando à velocidade da manivela e o homem ia narrando as cenas, “…. E agora muita atenção…. O TARSAN vai beijar a JEAN….,” e, quando a cena se aproximava do auge, o “homem do cinema à manivela” parava a manivela, e…. a plateia fazia um barulho infernal, num misto de alegria e admiração, e também os havia, com pudor. E o “Homem do cinema à manivela”, quando via que chegava de alegria, recomeçava a dar à manivela e as cenas sucediam-se, e ele dizia, dizia, …. “E agora reparem bem, o Tarsan vai lançar-se duma árvore para a outra e a macaca vai atrás dele, e agora ele cai no lago….e… e….e por aí fora, só se calando quando aparecia o lençol todo branco, e o “Homem do cinema à manivela” acendia outra vez aquela grande, muito grande, lâmpada que de gambiarra vinha até ele. Quando era este tempo, fazia-se silêncio de morte na Sociedade, as pessoas queriam mais, mais qualquer coisa, só não queriam regressar à vida vivida de verdade, as pessoas, qual cinema paraíso, queriam viver de faz de conta porque a vida vivida e toda a que iam viver no tempo que faltava, era verdade, e a verdade, quase sempre era dura, muito dura.
O “Homem do cinema à manivela”, desmontava rapidamente a torre de projecção, tirava as bobinas e deixava o trabalho de rebobinar, para o fazer na Terra onde amanhã fosse mostrar o “Tarsan Homem Macaco” dando à manivela e parando na altura do beijo.
Silvestre Félix
Dezembro 2007