domingo, 16 de dezembro de 2007

Abrunheira – Terra com História

O Silvestre tinha prometido contar o final da história sobre o gado, pois aqui vai:
Levar o gado ao monte -II
"Enquanto o gado no seu remanso pastava ou remoía, sim… remoía, este animal bovino tem um sistema digestivo diferente da maioria dos outros mamíferos, e, o remoer, é como se fosse mastigar outra vez, bom… mas o que eu queria mesmo dizer é que, outra maneira de passar o tempo e demorava muito tempo contado em horas e às vezes dias, era tentar apanhar grilos e cigarras. Localizada a toca, pelo barulho, era apanhar um “fenacho” (caule de feno seco) e enfiá-lo pela toca tentando tocar no grilo ou cigarra, e eles, se isso acontecesse, rapidamente saiam da toca mesmo sabendo que corriam os riscos todos. Mas estes bichinhos também os há, uns mais espertos que outros, e então havia alguns que tinham as tocas curvas, e aí a coisa complicava-se.., por falar em grilos e cigarras, há muito tempo que na Abrunheira não ouço esta sinfonia. As cigarras então, de dia ou de noite nunca se calavam, e as rãs ?? no rio das Sesmarias ou nos charcos?? Também coachavam sem parar, e os morcegos à noite?? Os morcegos de volta dos postes da luz à noite caçando os insectos, e o Julinho com a cana em direcção ao céu muito estrelado assim como se fosse sempre Agosto, depois de ter ido ao sebo que o Pai (o Zé da Natália) guarda para o calçado, e naquela “lengalenga” chata, mas que o Julinho não interrompia e não deixava que ninguém o perturbasse naquela missão de céu estrelado e olhar esbugalhado, como sendo a missão mais importante que há no mundo… “morcego, morcego, anda à cana que tem sebo”… e no serão de Agosto, lá estava o Julinho sempre naquilo. Aliás, o Julinho era amigo dos mistérios magnéticos e eléctricos naquele tempo em tempo de escola primária, em tempo de imaginação primária, em tempo de tudo primário. Fomos por algum tempo colegas de carteira, carteira daquelas peças únicas com tinteiros à frente cheios de tinta para sujarmos os dedos de tinta e pintarmos a bata daquela tinta que devia servir só para as canetas de tinta permanente que nos obrigavam a utilizar em tempo moderno já de esferográficas BIC. Ali nos sentávamos todos os dias lado a lado. O Julinho, de quando em vez, quando eu estava distraído com outra coisa qualquer, juntava uma ponta da sua bata, aquelas batas aos quadradinhos azuis, juntava dizia eu, uma ponta da bata dele à minha, e, num tom altamente misterioso, dizia; “… está a fazer contacto …” no dia seguinte e no outro e no outro e ainda no outro, sempre o mesmo contacto, até que eu deixei de me assustar com o contacto. Voltando ao mamífero com asas, não tenho memória que alguma vez algum morcego tivesse pousado na cana com sebo.
Quando ia com o gado para o monte, só tinha medo das cobras, e havia muitas, se calhar também acabaram. Quando sentia alguma cobra desviava-me o mais possível, embora reconheça que algumas eram bonitas, vi algumas muito bonitas, mas que fossem para bem longe. E os lagartos?? Lagartões é que eram, daqueles verdes bem grandes. Quem não tinha, e concerteza ainda não tem medo nenhum das cobras e dos lagartos, é o meu primo Fernando. Lembro-me de ele levar um lagartão verde para a porta do baile na “Sociedade”. Estava muita gente como sempre acontecia quando havia baile, e ele trouxe o lagartão com um cordel como se fosse trela, e começaram a dar aguardente ao lagartão. Não me lembro do fim da história do lagarto embebedado, mas não deve ter sido agradável.
Quando ia com o gado para o monte, às vezes cruzava-me com o rebanho de ovelhas do meu Tio João. Naquela época lembro-me de quatro rebanhos grandes, com mais de cem animais. O meu Tio João, o meu Ti António pastoriado pelo Chico marido da Maria Augusta, o do Ti Veríssimo e do Ti Rafael Miranda. Não gostava de me cruzar com as ovelhas porque as nossas vacas não se davam lá muito bem com elas e demoravam muito tempo até que passassem todas. Gostava e passava muito tempo a ver o meu Tio João a tratar delas no redil. Fosse a mugir, fosse a arranjar-lhes as unhas, a tratar dos cordeiros, etc, etc. Houve um ano em que a minha Mãe me deixou criar uma ovelhinha que ficou órfã. É verdade, criamo-la em nossa casa a biberão, como se fosse um cão ou um gato. Andava a trás de mim para todo o lado e foi assim até ficar ovelha adulta, e aí teve de regressar ao rebanho do meu Tio João. Chorei porque não queria, mas tinha de ser. A minha ovelha rapidamente se adaptou ao rebanho, e quando me via ou à minha Mãe, fazia um pequeno desvio abanando o pequeno rabo, ajeitava-se para lhe fazermos uma pequena festa, e voltava toda contente para o seu rebanho. Depois gostava muito, mas mesmo muito, a ver e ajudar a minha Tia Ermelinda a tratar do leite e a fazer os queijos. Fiz muitos no inverno que é quando se faziam mais queijos frescos, era quando as ovelhas davam mais leite por causa da fartura de pasto. "
Silvestre Félix