terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Terra com História II


"Cabeça fora da janela e levar com o sopro do lado de Manique e o canavial da horta em frente toda dobrada para o lado da serra, era certo e sabido que ia dar chuva, e lá vinham as preocupações do costume, estava o caldo entornado para a Ti Mariana Soleta.
O Coutinho que era Bernardino, tinha saído de casa ainda escuro, para pegar na picareta e continuar a entrar pelas entranhas da terra até chegar à água, que deverá encher até acima, e que logo se vai chamar poço. É esta a sina do Coutinho que era Bernardino. Cabouqueiro era assim que se chamava a arte do homem que tinha “a ciência da pedra”. Na verdade tinha saído de casa como de costume, mas, o destino daquele dia estava traçado, o tempo tinha virado e o trabalho da arte do Cabouqueiro não se dá quando ele, o tempo, entende deitar chuva, até parece que é de propósito, porque já se passaram uns dias que o Coutinho que era Bernardino, não metia umas “charretes” na taberna da “Menina Emília”, e como o hábito faz o Monge, era bom que de vez em quando o tempo virasse de Manique, para que deitasse água de chuva, para o Coutinho que era Bernardino poder também deitar vinho pela goela abaixo. E assim foi, neste dia de Janeiro de há muitos anos passados, mais dos que eu já contei nesta vida.
O Coutinho que era Bernardino já casou tarde, e, nesta altura, ainda era a sua Mãe, Ti Mariana Soleta, que tomava conta dele naquilo que naquela época estava destinado às mulheres. Como acontecia noutros sítios, também na Abrunheira, a mulher nunca podia ir chamar o marido à taberna, mas se fosse a Mãe, havia uma certa tolerância e era isso que acontecia com o Coutinho que era Bernardino.
Tal como já acontecera tantas outras vezes, também neste dia, já lusco-fusco, o Coutinho que era Bernardino, nada de chegar a casa. A Ti Mariana Soleta, mete uma saca vazia à cabeça, que ainda chuviscava, e lá vai para o circuito do costume. Começa pelo Osvaldo/Faial, espreita com jeito, e Coutinho que era Bernardino nem vê-lo, vem descendo e chega à “Menina Emília”. Ainda estava a meia dúzia de passos e já ouvia a voz do Coutinho que era Bernardino, arrastada pelas “charretes” e ”ciganas” que durante toda a tarde tinha metido no bucho. A Ti Mariana Soleta, espreita à porta e começa com as pragas do costume que, o Coutinho que era Bernardino, mesmo empatorrado de “charretes” e “ciganas”, já sabia as de cor e respondia com a sapiência do Cabouqueiro que tinha a “ciência da pedra”. Dizia a Ti Mariana; “Ai filho!! Queira Deus que o vinho acabe…” “Oh Mãe…… Eu faço o possível….., mas o quer…, sou sozinho!” E lá continuava a Ti Mariana Soleta; “ Ai Valha-me Deus….. Porque é que o vinho não aumenta para 100 contos o litro???” Responde o Coutinho que era Bernardino; “ Oh Mãe…., até que eu não me importava…” E a Mãe; “ Não te importavas Filho??” Eu cá não…., desde que o litro fosse do tamanho da água da Lagoa Azul!!”
Este dia de Janeiro de há muito tempo contado em anos atrás, nesta Abrunheira; Que de luz, só a petróleo, água só do chafariz, do Santo António e de outros poços, fogão ou forno só a lenha, estrada só de pedregulhos, bosta de vaca e caganitas de ovelha, notícias só “O século” e visado pela comissão de censura e trabalho/emprego só na agricultura e sazonal….. Como dizia, este dia, como tantos outros, “passou à História” por causa da personagem Abrunhense que foi o Coutinho que era Bernardino."
Silvestre Félix - Janeiro de 2008