terça-feira, 1 de janeiro de 2008

Abrunheira - Terra com História

Um novo ano começa. Esperemos que ele nos traga tudo de bom e que ao nosso blog se juntem mais "abrunhenses".

Por agora, mais uma história que o Silvestre nos enviou:


Artista Sapateiro Sapateiro é Arte de quem faz ou arranja sapatos, de onde vem o nome, mas também botas, polainas, sandálias, chinelos e todas as outras coisas onde metemos os pés. Agora, neste tempo de shopping’s e outros parecidos, já não sei se há Sapateiros e não há Arte ou se não há Sapateiros nem há Arte de fazer sapatos, botas, polainas, chinelos e todas as outras coisas onde metemos os pés, porque Sapateiros que fazem chaves, carimbos e cartões de visita e dizem que concertam calçado, tudo ao mesmo tempo, não podem ser Artistas de Sapateiro.
Recuando 40 anos, na Abrunheira, havia dois Artistas Sapateiros. O Zé Celorico, que ainda está entre nós, embora muito em baixo, e ainda me cruzo algumas vezes com ele, e é Celorico como a Mulher é Maria do Celorico porque vieram de Celorico da Beira, nas bordas da Serra da Estrela, casal muito activo e conhecido de todos, ele porque era Artista Sapateiro e ela porque era, e porventura ainda é, muito faladeira com todas as Marias desta Abrunheira de há 40 anos atrás e, se calhar, também com as Marias desta Abrunheira deste tempo. Ele, o Zé Celorico, antes do meio da idade, e porque se calhar, o trabalho de Artista Sapateiro não lhe chegava para o que ele e a Maria do Celorico precisavam, converteu-se ao horário e ordenado certo da Fábrica de Plásticos Atil, que de paredes ainda existe mas de plásticos nada e a de Atil ainda muito menos, e a Maria também foi com ele, e por lá andaram, e eu também andei e trabalhei alguns meses, até que o tempo contado em anos, os encaminharam para outros afazeres.
Mas para falar de Artista Sapateiro, não o Zé Celorico, que de boa pessoa tem o seu lugar na história da nossa Terra, tenho de falar do outro Artista Sapateiro, o Ti Joquim (Joaquim), não me lembro do apelido, porque de nomes lembrados sou muito fraco e porque eu e toda a gente na Abrunheira se lembrava deste Artista Sapateiro e Contador de histórias como “Cagachuva”. Esta alcunha não sei donde veio, provavelmente é demasiado óbvia, mas o certo é que era O “Joquim Cagachuva” o seu nome universalmente conhecido. O “universalmente” está bem metido porque, quando era mais novo, este Artista Sapateiro que era casado com a “Margarida Cagachuva”, esta mais faladeira que todas as Marias do Celorico juntas, andava de terra em terra porque naquele tempo não era o sapato ou bota que ia ter com o Artista Sapateiro, mas sim o Artista Sapateiro que ia ao encontro das botas, polainas, sapatos, chinelos, sandálias e outras coisas onde se metem os pés. É verdade, O Ti Joquim, mesmo coxeando da perna nascida desigual da outra, metia-se ao caminho desde o Linhó, que acho era onde tinha morada fixa, e direitinho às Casas Grandes dos lavradores para aplicar a sua Arte no calçado dos patrões e dos trabalhadores. E então lá ia o Ti Joquim pela Ribeira da Penha Longa, Alcabideche, Alcoitão, Bicesse , Amoreira, Manique de Baixo e de Cima, Trajouce, Abóboda, Cabra Figa, Albarraque, Abrunheira, etc, etc. Por todas estas andanças, muitas histórias foram acontecendo ao Artista Sapateiro.
E das histórias gostava eu, que quando lá ia ter com ele, não me levava a preocupação de engraxar os sapatos. “Bom dia Ti Joquim, então como é que vai isso?? Vai bem…,” dizia ele e nunca se esquecia de… “Há por ai um cigarrito??” E então começava o ritual. Punha o cigarro nos lábios grossos e babados e pedia lume e, depois do cigarro aceso e daquela conversa em jeito de introdução, tipo… vai chover… não vai chover…. Tá um calor dos diabos… tá bom pás batatas… tá bom pós nabos…., lá vinha, a propósito de um destes temas, lá vinha dizia eu, a invariável expressão; “Um’ocasião…” e pronto, estava dado o mote para mais uma história aí com 40 anos ou mais, e passada numa das Terras por onde o “Ti Joquim” andava; Alcoitão, Bicesse, Manique, etc, o local de acção era sempre a sociedade lá do sítio e a cena era de diversão, nunca de trabalho, que era o bailarico, e acabava em sessão de porrada com história de mulher pelo meio.
As histórias eram intermináveis, porque este Artista Sapateiro e Contador de Histórias, fazia jus a esta última vertente, e, se fosse preciso, ligava uma à outra e nunca mais acabava, e o cigarro ardia, ardia… e o “Ti Joquim” contava, contava, até que o cigarro se apagava e ficava como se dali fizesse parte.
Ele, O Artista Sapateiro e Contador de Histórias, porque tinha necessidade de falar recordando o tempo passado contado em anos que nem Ele muitas das vezes já sabia, e eu, porque as imaginava à minha maneira como se fossem de quadradinhos, e por ali ficava tempo passado em horas, porque quando ia lá visitar o “Ti Joquim” não me levava a preocupação de engraxar ou arranjar os sapatos.
A Abrunheira é uma Terra com história e estes são os seus personagens.
Silvestre Félix