domingo, 17 de fevereiro de 2008

Pato Bravo


Para recordar, cá vai mais uma história em que o protagonista é outra Abrunhense que já se foi há uns anos, mas que decerto permanece nas lembranças de muitos de nós, o João Barriga.


"Olha o “pato bravo”! Dizia o João Barriga enquanto se aproximava, naquele passo muito rápido e mais pequeno do que a perna…., inclinando o corpo todo, à direita e à esquerda conforme as passadas. Eu lembrava-me daquele fulano, quando às vezes, ao Domingo, vinha com a Felicidade a casa dos meus Avós …. Ai aquela sopa de feijão que a minha Avó fazia…. mas o que é que ele, o João Barriga, sabia de mim para me chamar “pato bravo”?? e o que era isso de pato e ainda por cima bravo??
A carroça era pequena para tanta tralha e ainda a cadela mimi, com uma trela improvisada presa ao taipal da carroça e a gata miss, dentro duma alcofa daquelas de junco seco com desenhos pintados a verde, que tinha as asas atadas para o animal não fugir. Eu, a minha Mãe e a minha Irmã, vínhamos à frente nos bancos da carroça e a tracção, claro, como não podia deixar de ser, a burra carocha que não era nada burra e antes esperta que nem um alho. Logo que sentia qualquer coisa em cima do lombo, nunca deixava de dar o seu coice, e, se pudesse, desatava a correr com ou sem freio nos dentes. Só o meu Irmão é que conseguia tê-la à rédea curta.
Estávamos por finais de 1958 princípios de 1959, e era final do dia quando chegamos à porta da casa onde morava a minha Irmã Maria José, logo abaixo do chafariz à direita, nas casas do João de Leião. Era final do dia e aí se explica aquele encontro com o João Barriga, que vinha do trabalho da “novíssima” Resiquímica, ou naquele tempo, talvez Resistela. Nos dias, meses e se calhar anos que se seguiram, sempre que se cruzava comigo, o (depois) simpático e divertido João Barriga, saudava-me sempre por “pato bravo”. Uma vez explicou-me porquê. Muito simplesmente porque vim de fora da Abrunheira, era estrangeiro. Claro que ele conhecia bem o meu pessoal e sabia que eu tinha cá nascido, mas enfim, era uma maneira de entrar comigo e brincar um bocado.
O João Barriga era caçador (de antigamente) de pau. É verdade, nunca vi aquele homem com uma espingarda. Naquele tempo, as espingardas eram inacessíveis à grande maioria dos Abrunhenses, e o João Barriga, como outros, por exemplo o meu Tio Rafael (Coxo) e até algumas vezes o meu Pai, caçavam com pau e com bons cães. O João Barriga e a sua mulher, tinham sempre muitos cães, uns de caça e outros não. Lembro-me bem de ver o João Barriga com coelhos à cinta, caçados com o seu pau e os seus cães. Tratavam muito bem os seus cães e também alguns que nem deles eram. Na campa do João Barriga, no cemitério de Chão de Meninos, entre as placas de mármore, podemos ver um cão em cerâmica que de certo foi a sua mulher que lá colocou, para testemunhar o seu amor pelo melhor amigo do homem.
Pois nós tínhamos vindo duma quinta chamada “Casal Novo” em (naquela época) Vale de Porcas, que os meus tiveram de renda durante 4/5 anos. Enquanto a casa para onde nós íamos, ainda não estava disponível, ficamos em casa da minha Irmã, e foi esse o dia que chegamos de carroça cheia, outras coisas já tinham vindo antes incluindo a (mini) manada de vacas leiteiras da minha Mãe, que ficaram numa vacaria do meu Avô.
Esse dia, é para mim o princípio da memória consciente. Teria quatro anos e meio, mais mês menos mês, e é a partir desse acontecimento que tenho recordações cronologicamente arrumadas, e o João Barriga está lá num sítio muito privilegiado, porque, para além de estar associado a esta fase do meu crescimento como Ser, era um Homem que fez da Abrunheira a sua Terra e que, de certeza, é recordado com saudade por muitos Abrunhenses como eu."
Silvestre Félix
Fevereiro de 2008