quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Grande chuvada


E o nosso Rio das Sesmarias não conseguia aguentar mais água, sempre… sempre… sempre a chover sem parar em tamanha quantidade que já não se via ponte nem estrada nem caminho nem nada. Do lado de dentro de casa bem se ouvia o barulho da corrente. “Ai valha-me Deus, tanta água que até parece o dilúvio… e o Rio que já deve ir cheio” Nesta madrugada de Sábado para Domingo de 25 para 26 de Novembro de 1967 a aflição foi grande e a minha Mãe não dormia! No Rio das Sesmarias não parava de correr cada vez mais água desde que começou a chover pela manhã daquele Sábado que foi dia de aula grande de Religião e Moral na minha Escola do Cacém, que mais sorte tinha que os outros da Mocidade Portuguesa fardados de verde azeitona. Aprendi a história de Cristo e dos Apóstolos naquelas aulas de Religião e Moral que o Padre que podia ser Carlos, Manuel, Simão ou Paulo contava com gosto e que eu ouvia com prazer.
A camioneta da “Eduardo Jorge” passava aos plásticos às sete menos dez para aula madrugadora às oito. Chovia já na saída de casa. “Oh Filho! mete os jornais por dentro dos botins que assim os pés não te arrefecem.” Botins? sim botins, um dia daqueles era para calçar botins, aquelas botas de borracha de cano auto que neste tempo (agora) se chamam “galochas”. A figura ficava completa com duas sacas de ração do gado, uma, dobrada a meio formando um capuz pelas costas abaixo e a outra à cintura tipo saia. Está muito escuro e chove bem, todas as saídas desta hora metem-me medo, mas neste dia ainda mais. A “Lavi” não era e os pinheiros pareciam pessoas que por mim esperavam. Só conseguia olhar para a frente e suspirava quando avistava os plásticos (Adreta Plásticos). Ia ser um dia diferente, e nunca consegui perceber porque me lembro de pormenores desse Sábado ainda antes de saber que ia ser um dia histórico pela negativa. Morreram muitas pessoas na região de Lisboa, muitas mais do que o Salazar deixou que se dissesse. O nosso Rio das Sesmarias, mesmo assim foi cuidadoso com os Abrunhenses. Aguentou firme o máximo de cheia que conseguiu, e não deixou que houvesse estragos de monta.
Naquela mesma madrugada o Rafael Coxo e a minha Tia Eugénia estavam preocupados. O “pezinhos” não aparecia. Tinha dito à tarde que ia com o pessoal do costume provar a água-pé do “Pena”, mas depois nunca mais ninguém o viu. Ainda à noite, antes da madrugada cheia de água, o Rafael perguntou pelo “meu António” a toda a gente e nada. À hora da chuva mais calma, ainda lusco-fusco da madrugada de Domingo, empreendeu o Rafael Coxo uma caminhada com fartura de lama até Mem Martins. Foi pela Charneca, por detrás da “Comportel” e ainda não eram oito da manhã já estava na “Casa Maceira” no cruzeiro de Mem Martins a perguntar pelo “meu António” como se todos tivessem de sabedoria igual e adivinhassem quem era aquela figura. Como o silêncio ganhou, o Rafael Coxo não desistiu e teve a feliz ideia de prenunciar a alcunha do filho “Pé Chato”! Bem, o Rafael nem queria acreditar, todos os três ou quatro manfios que ali estavam, conheciam o “Pé Chato” e mais, disseram-lhe logo onde é que deveria estar. Pois é, o Pezinhos tinha ficado em casa da namorada. Nunca mais parava de chover e acabou por lá ficar e o Rafael Coxo lá foi bater à porta aquela hora da manhã de Domingo, usando e abusando do seu habitual “à vontade” em situações por muito complicadas que fossem. Vou ficar aqui, por agora, mas toda a estória tem seguimento como o leito do Rio das Sesmarias.
Silvestre Félix – Agosto de 2008