sábado, 12 de abril de 2008

O desporto da época

O nosso amigo Silvestre andava um pouco afastado, por falta de tempo, mas regressou com as suas histórias.


"Os matraquilhos e o jogo das damas. Tem pressa vai andando! Diz o Manel quando algum freguês repete o pedido da bica que ele demora tempo infinito naquela rotina vagarosa. Oh Manel tira lá a Bica! Tens pressa vai andando ou vai ao Ramos (mais tarde o Cabaço). E lá vai movimentando um braço e a mão, retira muito devagar o copinho da bica debaixo dum pano em cima da máquina, depois coloca o copinho no sítio, com uma espécie de colher que é a medida do café, retira o pó do recipiente ao lado da máquina e coloca-o, sempre muito devagar, no acessório que encaixará na máquina, mas antes, calca bem o pó com uma apropriada peça, e só depois encaixa, de baixo para cima, com um movimento forte, na máquina. A seguir, sempre naquela lentidão que até enerva uma “preguiça”, levanta a mão direita até agarrar o manípulo da pressão, e puxa-o para baixo uma, duas, três ou mais vezes, até fazer com que a pressão faça o precioso líquido sair muito quente para dentro daquele copinho de vidro transparente que nunca voltei a ver noutro sítio. Finalmente a bica estava tirada, e era única de saborosa.
Duas ou três mesas, com aquele tampo de mármore e pintadas a azul como as cadeiras, estão ocupadas com dois jogadores de damas e uns cinco ou seis mirones. Com as brancas está o Durães e com as pretas um adversário à sua altura. Fumo de tabaco, muito fumo e uma barulhada infernal. É um Domingo à tarde de Abril de 1968, e, para muitos de nós na Abrunheira, o único passeio e diversão, é o café Brasil ou café do Manel como era mais conhecido. Para além da televisão, colocada bem no centro da parede do lado esquerdo quando se entra, e com certeza com o Júlio Isidro a apresentar um programa infantil, o jogo de damas na sala do café, e os matraquilhos e a laranjinha que mais tarde deu lugar a um snooker, na designada sala de jogos, são a nossa diversão. Os jogadores que todos os da minha idade, 13/14 anos, gostaríamos de vir a imitar, eram entre 5 a 15 anos mais velhos.
Nas damas, lembro-me por exemplo do Durães ou do Chico Chamiço, nos matraquilhos o Batista, o “Pé Chato” ou “Pèzinhos”, o Chico Cruz, o Camarinha. Em cada partida, tanto de damas como de matraquilhos, em que se defrontavam os melhores, havia sempre uma dúzia ou mais de mirones a assistir que vibravam como se de um grande torneio de xadrez se tratasse, ou um grande jogo de futebol se disputasse.
Ao Domingo à tarde o café do Manel está cheio, elas com os melhores vestidos e algumas com leve sombreado artificial nos olhos, eles também com a roupa domingueira naquele tempo diferente da dos outros dias, e o Manel lá ia tirando, muito devagar, as bicas naqueles copinhos de vidro que nunca mais vi.
Em Abril 1968, na Abrunheira, como em tantos outros locais do nosso País, ainda não se sabia que o Salazar ia cair da cadeira, e alguns, não podiam estar no café do Manel porque estavam em Angola, em Moçambique ou na Guiné com a G3 por companheira e aquela guerra como modo de vida.
E o Manel lá ia tirando, muito devagar, mas mesmo muito, como se fosse em câmara lenta, as bicas naqueles copinhos de vidro que nunca vi em mais nenhum lado."
Silvestre Félix