quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Terra com História

ZÉ FUNILEIRO

E aquele cheiro a solda a derreter que, como de pimenta se tratasse, entrando sem cerimónias pelo nariz acima. As pancadinhas “toc, toc, toc” no novo fundo do tacho e o ferro em brasa na máquina a petróleo, tudo no seu sítio por cima da bancada daquele carrinho de três rodas e pintado com aquele azul com muitos anos de vida por meados e três quartos do finado século vinte, nesta Terra de abrunhos e do Rio da Sesmarias ainda com pomares sumarentos e searas louras debulhadas, ensacadas e enfardadas, com o verão a impor-se até às primeiras chuvas de Setembro.
O “Zé Funileiro” era tão Abrunhense como os que por cá nasceram. De vizinho do “forno de cal do Serrado da Fonte” em figura alta e esguia já dobrada pela esperança de vida com cabelo e barba muito branca, dava a volta pela Abrunheira, que de distância não era comprida nem larga e assim prolongava a duração das panelas, dos tachos, das frigideiras, das “bilhas” do leite, das cafeteiras, dos fervedores, pratos, tigelas, etc, etc.
“Está na hora de comer, tava a ver que tinha que ir à vossa procura! Vá, venham lá comer. Oh Mãe, eu não tenho fome. E eu também não Mãe. O quê? Então mas porquê, onde é que estiveram? Estivemos com o “Ti Zé Funileiro”... O quê? Sim estivemos com o Ti Zé e comemos aquela açorda que é muita boa. Ah seus atrevidos, eu não vos estou farto de dizer que não quero que aceitem açorda do “Ti Zé Funileiro”, tomara que chegue para ele, quanto mais pra vocês? Pra próxima levam!”
O “Ti Zé Funileiro” foi durante alguns anos personagem activa da nossa terra. Embora não fosse nascido cá e tivesse “um passado” com algumas nuvens negras, que se dizia não por culpa dele, era boa pessoa, humilde no viver e no ser, generoso de alma, e por isso, partilhava o pouco que tinha a começar pelas suas “sopas”, e pelos pingos de solda que aplicava na panela do vizinho Abrunhense que, mesmo sendo o seu rendimento, muitas vezes não cobrava.
Naquela época de boca calada e de direitos humanos ausente, a solidariedade do vizinho, mesmo na Abrunheira, era autêntica; ou se era, ou não, e o “Ti Zé Funileiro” era. As sopas e os pingos de solda oferecidos eram pequenos gestos de grande significado.
Silvestre Félix
17 de Fevereiro de 2009